O povo também quer comer o biscoito fino da cultura



Carlos Motta


O Brasil é um país de terceiro mundo com qualidade musical de primeiro mundo, diz a jornalista Maria Amélia Rocha Lopes. "Mas vivemos tempos nefastos. Lemos pouco, vemos muita televisão. O dinheiro é curto e, se for preciso cortar no orçamento familiar, será no destinado à cultura. Não estamos conseguindo ampliar o acesso a uma vida cultural intensa, formadora, que amplie horizontes", acrescenta. 

Maria Amélia faz, porém, uma ressalva importante: a população também gosta do biscoito fino. "Basta ver a frequência aos espetáculos ao ar livre, gratuitos. Ou aos shows de espaços como o Sesc, por exemplo, que vende ingressos a preços populares e oferece grande qualidade." 

O golpe que afastou Dilma Rousseff da presidência da República, diz, "a escola sem partido, o conservadorismo brutal que toma conta do país", tudo isso, explica, "faz piorar e muito esta situação - não há paticamente orçamento para cultura e os golpistas não tem a menor intenção de levar cultura às massas".

A opinião de Maria Amélia tem muito peso. 

Afinal, ela é uma das mais experientes jornalistas da área cultural do país, crítica musical respeitada, e, nos anos em que trabalhou, entre outros veículos, no saudoso "Jornal da Tarde" e no programa "Metrópolis", da TV Cultura, conheceu as mais destacadas personalidades brasileiras do setor artístico.

Nesta entrevista, Maria Amélia fala sobre o atual cenário da música popular brasileira, o jornalismo cultural que é feito hoje no Brasil, as novas formas de divulgação do trabalho dos artistas e a atuação do Estado na área da cultura e da arte. 

Nesse último tópico, ela é incisiva: "Falta tudo para o Estado fazer. De jeito algum ele vem atuando de forma eficiente. A Lei Rouanet, ao contrário do que a maioria desinformada espalha, não significa o governo sustentando vagabundo. Ela permite que empresas invistam parte do imposto de renda devido, em cultura. O problema é que as empresas só querem bancar o que lhes agrada", diz. E pergunta: "Quem quer financiar arte contestatória, espetáculos de vanguarda, artistas ainda não consagrados?"

Segundo Clichê - Como você vê o atual cenário da música popular brasileira? Falta qualidade?

Maria Amélia Rocha Lopes - Não creio que falte qualidade. O que falta é divulgação, espaço para a música consistente nos meios de comunicação de massa. Estamos vivendo a época da falsa sensação de identidade universal – parece que o país inteiro ama duplas, sertanejas ou não, e isso não é verdade. Segundo Adorno e Horkheimer, toda a cultura massificada é idêntica, causando uma aparente sensação de integração. A indústria cultural uniformiza e comercializa a arte em série. Não pretende dar espaço para individualidades e questionamentos. E vamos nós convivendo com esses trinados vocais difíceis de suportar.

Segundo Clichê - Com a queda brutal na venda de CDs, como os artistas estão se virando? A internet é o futuro para os artistas?

Maria Amélia - Acho que os artistas mais veteranos demoraram um pouco mais a perceber que o mercado da música havia mudado, que ninguém mais venderia milhões de CDs, que a música estava “solta no ar”, digital. Demoraram a se dar conta de que o melhor a fazer era lançar seu trabalho nas redes, esperar que se tornasse conhecido, viralizasse e, a partir daí, despertasse no público a vontade de ver o show daquelas canções, ao vivo. Tempos atrás os músicos lançavam seus CDs, vendiam bastante, eram valorizados por suas gravadoras e assinavam bons contratos. Poderiam ou não fazer shows. Tinham tempo. Isso se derreteu. Creio que a maioria deve estar vivendo de views na internet, de direitos autorais e shows.

Segundo Clichê - O Estado vem atuando de forma eficiente na área artístico-cultural? O que falta fazer?

Maria Amélia - Falta tudo. E, de jeito algum vem atuando de forma eficiente. Bem ao contrário. De um lado temos a Lei Rouanet que, ao contrário do que a maioria desinformada espalha, não significa o governo sustentando vagabundo. A lei permite que empresas invistam parte do imposto de renda devido, em cultura. O problema é que as empresas só querem bancar o que lhes agrada. Quem quer financiar arte contestatória, espetáculos de vanguarda, artistas ainda não consagrados? O Santander tentou lá no sul do país, mas voltou atrás correndo quando os inomináveis integrantes do MBL tomaram a exposição Queermuseu de assalto, enxergando sandices como incentivo à pedofilia, discussão de gênero, zoofilia. Talvez o momento mais interessante tenha acontecido durante a gestão de Gilberto Gil à frente do ministério com a criação dos Pontos de Cultura, uma inversão do que até então conhecíamos, com a questão cultural crescendo de baixo para cima. Até vou reproduzir um pequeno texto sobre o tema, que acho que vale a pena:

Trata-se de uma política cultural que, ao ganhar escala e articulação com programas sociais do governo e de outros ministérios, pode partir da Cultura para fazer a disputa simbólica e econômica na base da sociedade.

Esta base social também se amplia para outros segmentos sociais, alcançando os setores médios, em especial a juventude urbana, periférica, universitária, jovens artistas, novos arranjos econômicos e produtivos, toda uma nova economia que vem sendo inventada e experimentada daqueles que encontram no fazer cultural uma alternativa de trabalho, vida e inserção social.

Ficou no sonho.

Segundo Clichê - Por que a música instrumental brasileira é mais apreciada fora do país do que aqui?

Maria Amélia - Somos um país de terceiro mundo com uma qualidade musical de primeiro mundo. Mas vivemos tempos nefastos. Lemos pouco, vemos muita televisão. O dinheiro é curto e, se for preciso cortar no orçamento familiar, será no destinado à cultura. Não estamos conseguindo ampliar o acesso a uma vida cultural intensa, formadora, que amplie horizontes e nos prepare, por exemplo, para a sofisticação da música instrumental. Mas a população gosta também do biscoito fino. Basta ver a frequência aos espetáculos ao ar livre, gratuitos. Ou aos shows de espaços como o Sesc, por exemplo, que vende ingressos a preços populares e oferece grande qualidade. O golpe, a escola sem partido, o conservadorismo brutal que toma conta do país, tudo faz piorar e muito esta situação. Não há praticamente orçamento para cultura e os golpistas não tem a menor intenção de levar cultura às massas.

Segundo Clichê - Quem você destaca, entre os artistas mais novos, pela qualidade de seu trabalho? Quem merece tocar mais no rádio?

Maria Amélia - Estou ouvindo uma cantora baiana que me surpreendeu. Chama-se Jurema, é compositora e lançou há dois anos CD "Mestiça". Muito bom! E também o CD "Casa", do paulistano Tiago Frúgoli. O disco tem o baixista Noa Stroeter, o baterista João Fideles, além de Valério, Marcelo Miranda e Vitor Cabral. Música instrumental de gente muito jovem e imensamente talentosa.

Segundo Clichê - A geração dos festivais dos anos 60 teve sucessores? O que você acha do trabalho dessa turma hoje?

Maria Amélia - A geração dos festivais dos anos 60 foi grande, enorme. Escreveu e escreve a história da música popular brasileira até hoje. Eles conseguiram se reinventar, continuam produtivos, talvez não com o volume de antigamente, mas ainda com muita qualidade. Penso que existam ótimos compositores hoje, cantores nem tanto, mas acho que é preciso o tal do distanciamento histórico para medir o tamanho da nova geração.

Segundo Clichê - E sobre a imprensa especializada: há, nesta geração de jornalistas, críticos musicais, repórteres que entendem do assunto, ou vivemos a era dos "press releases"?

Maria Amélia - A imprensa, de maneira geral, caiu de qualidade. Nas redações, os mais experientes e, portanto, com melhor salário, foram substituídos por gente nova e disposta a ganhar o que oferecerem. É provável que existam talentos, mas não os tenho visto. Observando à distância, diria que você tem razão: vivemos a era dos press releases. Com a nova forma de fazer e distribuir música, os críticos perderam um pouco a razão de ser. A impressão que tenho é de que ninguém está muito interessado na opinião do outro sobre seu próprio trabalho. Mesmo que este outro tenha as ferramentas capazes de orientar, apontar defeitos e ressaltar virtudes, dar um norte, enfim.

Segundo Clichê - Sobre você: quem são seus artistas, brasileiros e de fora, preferidos? Você tem um gênero musical de preferência? Como se interessou profissionalmente por essa área? Onde você tem trabalhado atualmente?

Maria Amélia - Amo a música brasileira – de Donga e Pixinguinha a Emicida, passando por tudo o que tem no meio disso. Ando com muita saudade de grandes cantores e cantoras. Há boas novatas, mas poucas com personalidade marcante. Então, tenho garimpado coisas antigas de Gal, Elis, Bethânia (irresistível nos sambas do Recôncavo). Tenho ouvido muito Milton Nascimento, Gil, sempre, Caetano, Paulinho da Viola, Djavan, Chico, Tom, João Gilberto. Dificilmente vou dormir sem ouvir aqui no computador um pouco de Billie Holiday – ela canta "Speak Low", numa versão de 1952, que ouço praticamente todos os dias. Nina Simone, Ella e Sarah, também “sempre me visitam”. Não passo sem Beatles. Adoro o "Boogie Naipe", do Mano Brown. Gosto de Cassiano, Tim, Hyldon, Bob Marley. E tenho certeza absoluta de que estou esquecendo outros igualmente queridos. Música para mim é estado de espírito. Tem dias que só o "Acabou Chorare", dos Novos Baiano, resolve. Ou um Pablo Casals... Minha família sempre foi muito musical. Conheci o rock e a bossa-nova com meus tios. Um deles tocava bateria num trio de bossa. Minha mãe cantava muito bem, amava Orlando Silva e me passou esse gosto. Comecei no jornalismo na área de Variedades. Virar repórter especial e crítica de música foi quase um caminho natural. Atualmente, sou roteirista e apresentadora do" Bom para Todos", da TVT, um programa de serviço e informação, com temas que passam por saúde, educação, cultura, trabalho, cidadania e muito mais. Pode ser visto na página do http://facebook.com/redetvt .

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